Veja, Lula e Software Livre
Por que a Veja não entende o software livre
Neste domingo, eu levei um susto.
Eu não confio cegamente na cobertura jornalística de ninguém - jornalistas são humanos e, como tal, estão sujeitos a falhas ocasionais. Essas coisas acontecem. Uma publicação de grande circulação (e grande orçamento) pode se servir de uma boa equipe editorial que não vai deixar a peteca cair - não vai deixar o jornalista errar. Ao menos não demais.
Uma história interessante é a do "boimate": um dos mais engraçados - e constrangedores - episódios do jornalismo científico brasileiro. Essas coisas acontecem quando um jornalista (hoje ele é diretor de redação da Veja) se vê obrigado a cobrir um assunto do qual não entende absolutamente nada. Engenharia genética já foi um desses assuntos.
Software Livre é outro assunto que faz muitas vítimas.
A maioria delas cai sem saber o que a atingiu. Elas simplesmente não entendem o que é essa coisa.
Eu não quero explicar, de novo, o que é Software Livre. O pessoal da Free Software Foundation é muito melhor nisso do que eu. Eu prefiro me focar em algumas das coisas que, parece, as pessoas não conseguem entender:
- Software Livre não quer dizer software grátis. Se você quer usar um programa livre como está, ótimo para você. Se quiser encomendar uma alteração, personalização ou qualquer outra coisa que tome tempo e recursos, vai ter que pagar por isso. Vai receber de volta um programa licenciado para você como Software Livre, com todas os direitos e deveres que isso implica (basicamente - me perguntam sempre - você pode vendê-lo pelo preço que quiser, mas sob a mesma licença e com código-fonte). É verdade que alguns programas livres famosos são distribuídos sem custo (Firefox, várias distribuições de Linux), mas as licenças não obrigam isso. Ou seja - você pode ganhar dinheiro fazendo Software Livre do mesmo jeito que a maioria das empresas de software ganham - desenvolvendo algo pra alguém.
- Software Livre também não quer dizer software não comercial ou software feito por amadores. Meu servidor de aplicações preferido, o Zope é livre. Zope é mantido por uma empresa, com bonitos escritórios em um lugar legal, telefonistas e tudo o mais que você iria esperar de uma empresa típica do ramo. É um produto muito elegante, bem-acabado e extremamente estável. O JBOSS é mantido por outra empresa, que, aliás, foi comprada pela Red Hat. MySQL idem. Outros produtos são mantidos por entidades que recebem doações (em equipamentos, dinheiro ou pessoal) de empresas que dependem dele. Os servidores que operam o kernel.org foram doados pela HP.
- Também não quer dizer que ele venha "desmontado" e que precise de um especialista altamente qualificado para fazê-lo funcionar. Instalar um Ubuntu é simples. Instalar um Fedora é mais simples ainda (embora eu ache ele um pouco menos funcional que o Ubuntu). Se você não conseguir, devia procurar um médico. Os dois (e não são os únicos) são mais fáceis de instalar do que um Windows XP em um PC recente. Uma vez de pé, instalar software costuma ser trivial. Compartilhar arquivos e impressoras pode ser feito sem nem mesmo deixar o conforto (ou "andador") do ambiente gráfico. Na primeira vez em que instalei um anti-spam (foi no nosso servidor de e-mail), eu levei mais ou menos 20 minutos, divididos entre ler dois textos documentando o processo, instalá-lo com um único comando (sim - eu uso linha de comando) e fazendo mais duas alterações em dois arquivos que configuram outras coisas que trabalham junto com ele (fazendo como mandavam os textos). Se eu fiz, você pode.
- Software proprietário (Windows, Exchange, SQL Server, Oracle RDBMicrosoft, SAP, Notes, por exemplo) também não quer dizer necessáriamente software caro (ou mesmo pago - Opera é de graça e não é livre) ou que seja fácil de instalar ou manter feliz (me mostre uma empresa que tem um Exchange sem administrador e eu mostro alguém que, volta e meia, fica sem e-mail). Me mostre um banco de dados Oracle (ou SQL Server) sem DBA de plantão que eu mostro um banco de dados que, mais dia menos dia, fica sem seus dados.
- Software proprietário também não quer dizer software que funciona. Eu fui usuário de vários programas proprietários (alguns bem caros) e posso dizer que muitos deles não estavam prontos nem para testes públicos. E não adianta tentar receber seu dinheiro de volta, porque aquele termo de uso com o qual você concorda quando clica em "Eu concordo" dizia, provavelmente, algo como "o produto pode não servir para o que você queria e, se ele arruinar sua empresa, a culpa foi só sua". Eu sempre achei muito engraçado um antigo cliente que, durante as trocas de horário de verão ficava com metade dos micros em um horário, a outra metade em outro. Era impossível usar o Outlook para marcar reuniões sem confirmar pelo telefone.
- Defensores do Software Livre não são contra a Microsoft. Eu gosto muito do Natural Keyboard e dos mouses deles. Dizem que os joysticks são muito bons também. O Windows é feio e limitado, mas muita gente parece feliz com ele ("milhões de Lemmings não podem estar errados"). O que somos contra é o abuso de um monopólio para criar outros (coisa que, normalmente, as leis também não permitem). Não queremos puní-la pelo seu sucesso, mas lembrá-la que monopólios estão sujeitos a algumas regras e uma delas é não extendê-lo a outras áreas. A Microsoft tem, para todos os efeitos práticos, o monopólio dos sistemas operacionais para desktop e, por isso, não tem o direito de extendê-lo para, por exemplo, navegadores de web (eles destruíram esse mercado ao incorporar o IE ao Windows), tocadores de mídia (com o Media Player), mensagens instantâneas (Windows Messenger é embutido em todo Windows) ou venda de música on-line (coisa que eles ainda não tentaram com a necessária determinação). Como têm muito mais dinheiro que seus competidores, eles podem se dar ao luxo de sustentar prejuízos por anos em um mercado apenas para expulsar a competição dele. Isso pode parecer bom à primeira vista (todos gostam de ter brinquedos novos a preços baixos), mas, no fim, quando a competição no segmento acabar, quem perde são os consumidores. O aumento de custo nas licenças profissionais do Windows é talvez um sintoma da falta de competição no segmento.
- Nem tudo que não é Windows é Software Livre. Tem um pessoal que acha que, só porque não é Windows (ou só porque parece Unix), é livre. Isso não é verdade. MacOS X não é Windows e é proprietário (ainda que alguns pedaços livres). Solaris tem seu código aberto, mas não é considerado livre pela Free Software Foundation. HP-UX (que roda em servidores da HP) e AIX (roda em servidores IBM), idem. Symbian (que roda em quase qualquer telefone que vale a pena comprar) é bastante proprietário também.
Mas vamos à minha motivação principal.
O Artigo
O artigo peca por associar o Software Livre ao governo atual. É correto afirmar que a adoção de Software Livre é uma bandeira para o governo Lula, mas afirmar que o governo Lula seja uma bandeira para os proponentes e defensores da adoção do Software Livre é... desconfortável.
Não somos todos petistas. Não somos todos funcionários públicos. Nem estudantes.
Há muito Software Livre na iniciativa privada. Provedores de acesso e de hospedagem são grandes usuários. Isso quer dizer que, muito provavelmente, você é um usuário, mesmo que nem saiba. Muitas empresas estão descobrindo que sua infra-estrutura ficou mais barata e mais confiável com ele. Super-computadores usam. Qualquer um que precise de uma dose extra de flexibilidade vai acabar optando por ele, cedo ou tarde. Quanto mais cedo fizer, mais cedo colhe os frutos.
Quando o artigo diz que "A posição (de oposição à Microsoft) está baseada, em parte, na desconfiança ideológica" ele esquece que um governo não deveria mesmo depender de um único fornecedor, sob pena de comprometer a lisura dos processos de licitação - todos os concorrentes estariam oferecendo exatamente a mesma que, no final, beneficiaria um único fornecedor. A única variação seria a margem de lucro dos participantes, que pode ser controlada pelo fornecedor dando descontos diferenciados e, com isso, selecionando quais parceiros ganham e quais perdem que licitação. A longo prazo, isso quer dizer que o fornecedor final pode selecionar quais parceiros sobrevivem e quais não.
O artigo também peca quando diz que o uso de Software Livre "Na prática, talvez seja um problemão, sobretudo se o uso se transformar em obrigação". Seria um problema maior obrigar o uso de software proprietário. A chave, aqui, são os formatos de dados. Se o governo usar programas como os da família Office (que gravam os dados de maneiras que só a Microsoft conhece), nenhum outro programa será capaz de ler esses dados de forma completa (leituras parciais são possíveis, normalmente). Ao fazer isso, o governo obrigaria os cidadãos a "pagar pedágio" para a Microsoft se quiserem ler os arquivos ou, em último caso, usar uma cópia pirata (imagine... o governo incentivando o crime). Se você precisa de Internet Explorer para usar uma aplicação do governo, não tem outro modo de usá-la que não com Windows. Se, por outro lado, o site não funcionar com IE, mas funcionar com, digamos, Firefox, usuários de Windows podem instalá-lo livremente e usar o site - ninguém é excluído dessa forma. Quando o software "obrigatório" (e ninguém aqui falou em obrigar ninguém a nada) é livre, qualquer um pode escrever (ou contratar alguém para isso) programas que leiam esses dados. A liberdade de escolha só é limitada com a escolha de software proprietário.
"Foram feitas versões em código aberto do programa de imposto de renda on-line e do portal de compras públicas ComprasNet. O resultado foi tão ruim que os dois programas continuam funcionando no sistema Windows.". Não sei em que planeta o articulista mora. Eu fiz meu terceiro IR seguido usando a versão para Java do programa da Receita sem maiores problemas. O ComprasNet é bom e hoje ele funciona, mas eu conheço pessoas diretamente envolvidas com ele e eu ouço histórias de atrasos, retrabalhos e todo tipo de problema por conta, entre outras coisas, da plataforma Windows que vai por baixo dele. Não podemos saber o que aconteceria se a Vesta tivesse usado Software Livre em vez de Windows, mas, certamente, não podemos dizer que a coisa "simplesmente funcionou".
E, já que estamos falando nisso, nem o programa da Receita, nem o Java, podem ser classificados como livres. O único progresso é não ser apenas para Windows. Isso fez com que os que não compram os produtos de Redmond não fossem mais considerados cidadãos de segunda classe. É pouco, mas é um começo.
Em alguns pequenos pedaços em que ele calça a jaca: "Em São Paulo, já é possível preencher o boletim de ocorrência policial pela internet". Não é todo cidadão que pode. Antes de poder fazer isso, você precisa comprar um Windows. Precisa, porque o site só funciona com Internet Explorer. E eu pago meus impostos. Só não pago pedágio para a Microsoft.
O artigo de vez em quando até diz a verdade. Algumas iniciativas do governo são particularmente desastradas, de fato. Se emprestar urnas eletrônicas ao Paraguai impediu que os fabricantes locais pudessem vendê-las, foi burrice. Também acho uma pena que a Vesta tenha perdido uma venda ao governo boliviano por conta do nosso governo ter dado de presente um sistema equivalente.
O que o artigo esquece de mencionar, eu acho, é o mais importante de tudo. São os benefícios que uma adoção responsável e competente do Software Livre pelo governo trariam.
Eu posso citar alguns.
Benefícios para a Economia
Quando você compra um Windows, você gera empregos. Mas gera empregos em Redmond e sub-empregos em Bangalore. Gera alguns aqui, é verdade, mas bem menos do que poderia.
Se, por outro lado, você usar um Linux (eu recomendo Ubuntu), vai poder pegar o dinheiro que pagaria nas suas licenças em empregá-lo em outras coisas. Vai poder, de repente, comprar computadores um pouco melhores ou pagar treinamento para sua equipe. Trocar as cadeiras do escritório ou consertar o ar-condicionado. Vai poder investir em coisas que aumentem a produtividade ou o lucro. Tudo o que você deixou de gastar, vai poder aproveitar em outras coisas.
No caso do governo, eu acredito que a possibilidade de capacitar mão de obra local deve pesar bastante. É isso que acontece quando o governo investe nele. É isso que não acontece quando o governo gasta com software proprietário feito fora daqui.
Segurança
Auditar código (examinar "seu DNA") é fundamental para garantir de que um programa faz aquilo que ele se propõe a fazer. A Microsoft abre o código do Windows para grandes clientes e governos. Mas quem me garante que o código que foi visto é o mesmo que está nos CDs que ele comprou e que estão rodando em suas máquinas? Se isso é importante em uma empresa privada, com um governo, isso é fundamental.
Eu já contei antes a história do mais produtivo espião americano da Guerra Fria. Para quem não leu, esse espião era uma copiadora instalada na embaixada soviética em Washington. Essa copiadora tinha sido comprada nos EUA, de um fornecedor americano e tinha um contrato de manutenção no qual, de tempos em tempos, um técnico vinha e "dava uma geral" na máquina. Os soviéticos nunca se preocuparam em saber mais sobre ela, afinal, era apenas uma copiadora.
Dentro da copiadora havia uma camera que microfilmava todos os originais que eram copiados ali. De tempos em tempos, vinha o técnico para trocar o toner, limpar as engrenagens e trocar o filme da camera.
É irresponsável usar software não auditável para processar informações sensíveis. Qual é a punição se prontuários médicos de um plano de saúde vazarem por terem sido manipulados de forma negligente? No caso de um governo, se já não for, deveria ser crime.
Círculo Virtuoso
Cada programa que o governo licenciar como Software Livre beneficia toda a população. Beneficia porque qualquer um que se interesse pode ter acesso aos seus códigos, estudá-los e aprender com eles. Beneficia porque esses pedaços disponibilizados podem ser usados como componentes em outros programas novos. A indústria local de software pode usá-los e construir coisas mais complexas usando esses componentes. Reinventar a roda é ruim. Ganhar uma caixa delas é ótimo.
Imagine se os formatos dos dados do programa de imposto de renda fossem públicos ou se esses componentes dos programas dela fossem licenciados como livres. Poderiam existir outros programas além daqueles que a Receita fornece. Você poderia exportar sua declaração de dentro do seu programa de controle de finanças com o apertar de um botão. Um pequeno contador poderia fazer declarações on-line para mais pessoas. Poderia cobrar menos ou ganhar mais.
E, se houvesse um erro que os programadores do governo não viram, outros poderiam oferecer correções (ou mesmo apenas avisar do problema). Coisas assim acontecem todos os dias com Software Livre e são um dos motivos para ele ser usualmente mais seguro do que seus pares proprietários.
O Soco-Inglês
Eu entendo que a Veja tenha a posição editorial firme de não gostar de Lula. Eu também não gosto dele. Mas, se é pra criticar este governo, acho que dá pra ser mais específico e direcionado. Alvos melhores não faltam. Não se deve usar uma motosserra para fazer o trabalho de um bisturi.
E me aborrece quando alguém sem credenciais para sequer debater o assunto insinua que os modelos e produtos que eu uso e recomendo aos meus clientes sejam, de alguma forma, inferiores aos similares proprietários.
Os Fins e os Meios
O universo da tecnologia da informação está passando por uma série de transformações radicais. De metodologias novas a linguagens mais sofisticadas, tudo está mudando muito rápido.
Nenhuma mudança é, a meu ver, mais significativa do que essa que acontece na própria forma como o software é produzido. O modelo de competição e progresso lento está sendo substituído por um modelo de cooperação em que o progresso pode ser tanto mais veloz quanto menos custoso. É um modelo em que toda a indústria pode cooperar em projetos de interesse comum e usá-los para viabilizar novos produtos mais avançados mais depressa e de forma mais integrada do que em qualquer momento anterior.
Essa mudança transcende fronteiras e governos. Embora governos possam ajudar (e atrapalhar, com as leis erradas), essas transformações estão acontecendo e vão acontecer, com ou sem ajuda.
Já era hora.
© Ricardo Bánffy
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